Quanto tempo até que se encontre o corpo de uma mulher que viveu e morreu sozinha? Quanta correspondência cabe na caixa de correio de alguém que já não é?
Conheci Marcela Dantés duas vezes: a primeira, em 2015 ou 2016, quando tive um projeto de agência de design e a contratamos como freelancer. Um primor de artista. Competente, séria e criadora de artes belíssimas. Extremamente profissional.Lembro que fiz algumas piadinhas em reuniões e ela não riu. Não me lembro o nome de seu estúdio. Algo minimalista. Como seu não-sorriso.
A segunda vez que a conheci foi agora, em 2024, através dos seus livros. Aquela designer com um rosto que me levou de volta ao passado tinha virado uma escritora renomada. Seu não-sorriso estampava a contracapa de um livro. Finalista do Jabuti, ainda por cima. É engraçada a vida, cheia de voltas.
Vi um fantasma bem sucedido de uma pessoa que eu não imaginaria que desenhava palavras dentro de si. Poderia imaginar ela ganhando algum prêmio de design, com certeza. De escrita, foi uma surpresa. Uma bela duma surpresa, diga-se de passagem. Num misto de orgulho e curiosidade, comprei todos os seus livros de uma vez. Precisava ler algo da minha conterrânea conhecida. Todo mundo de BH tromba com todo mundo em algum momento.
Pois bem.
Nessa segunda trombada, conheci Anja, a protagonista do seu mais famoso livro. É a história real de uma mulher que por ser tão sozinha morreu em seu apartamento e demoraram 5 anos para que alguém a descobrisse morta. Imagine só isso? Mais estranho que a ficção, só poderia virar ficção.
Nunca se casou e vive no melhor apartamento de um prédio, comprado com o dinheiro do seu trabalho de cuidadora de idosos. Poderia ser uma aventura, um romance ou até mesmo uma comédia da vida privada. No entanto, a história de Anja é aquela vida desperdiçada. Uma anja que não voou. Não teve coragem de abrir suas asas para o destino. Clichê, mas é exatamente isso:
A vida que poderia ter sido e não foi.
O destino ofereceu um não-sorriso para Anja. Sei lá por quê. Uma mulher com potencial, mas que preferiu a solidão. Bonita, mas nem tanto. Competente, e sem ambição. Sofrida, sem reviravoltas. Nenhuma vingança. Morreu como viveu. Sem graça.
Ao contrário de outra conterrânea – essa sem conhecidos em comum – Carla Madeira, Marcela não escorrega para o exagero nas palavras. Não precisa chocar a qualquer custo, tampouco lançar mão de frases de efeito à Deus dará. As frases do seu livro não vão virar muitas citações de posts de Instagram. Ainda bem. As palavras parecem escolhidas a dedo, compondo um fluxo de pensamento maroto, que nos faz entrar direitinho dentro da cabeça de cada narrador. Ela consegue a proeza de criar personagens com estilo narrativo completamente diferentes, e maneirismos particulares. A cena da morte de Anja é de um primor angustiante. Estamos lá com ela, de mãos dadas.
Para além da forma de escrever, o conteúdo que ela levantou com seu livro é um medo que todo ser humano tem, por menos solitário que seja: morrer sozinho, ser esquecido. Imagina, além de ninguém ir ao seu velório, ninguém notar sua ausência das redes sociais? Inadmissível. (foi esse tipo de piada que gerou o não-sorriso, é compreensível).
Anja me lembrou minha tia-avó, irmã da minha avó materna. Nunca se casou, viveu meio esquizofrênica e andarilha a vida toda e por fim, teve um AVC que a deixou debilitada aos cuidados da irmã. Já tive inúmeras conversas com a minha mãe sobre a necessidade de uma vida desperdiçada. Por que será que o Cara-lá-de-Cima envia uma alma à Terra para uma não-vida? O que ela veio fazer aqui, além de sofrer? Sim, pois no caso da minha tia, seu sonho era um casamento com um Marlon Brandon da vida (era obcecada por ele), grandioso. Era uma mulher orgulhosa, não se contentava com pouco. Talvez por isso mesmo nada foi o suficiente. Sei lá. Não entendo esse lado sarcástico de Deus.
O que o livro de Marcela e minha tia tem em comum é esse gosto amargo. As histórias que vemos todo dia na esquina da padaria ou no sobrenome compartilhado em casa. Pessoas com a vida toda pela frente, só que não. Destinos que parecem resto de comida de restaurante. Não há final feliz. No caso da minha tia, eu ainda fantasiava que ela conheceria algum velhote num encontro de idosos e se apaixonasse. Talvez dar um fim mais colorido para aquela vida cinza.
Não teve. Foi cinza mesmo.
Seu velório tinham exatas cinco pessoas: eu, meu pai, minha mãe, meu irmão e meu tio. Eu e minha mãe choramos muito. Confesso que nem tanto por ela, mais pelo tanto de desperdício de respirações. Células desgastadas à toa. Sem aproveitar cada batimento do coração.
Não que a gente aproveite tanto assim, também. Não somos gratiluz, por mais que a hashtag tenha mais de cem mil publicações. A gente não se dá conta do tanto de vida que nós mesmos – cheios de atividades – desperdiçamos: minutos gastos pensando na resposta que podíamos ter dado, resto de comida, ração de cachorro, água do banho quente, roupas usadas só uma vez, aquele dia que não pulou de bungee jump, a viagem que ficou com medo de gastar muito dinheiro, o beijo na pessoa errada, o beijo não-dado, a palavra com quem não te entende, o pulmão com o tanto de cigarro, a sanidade com excesso de bebida, um minuto na boca e uma eternidade na barriga. Os olhares direcionados à tela do celular e o cafuné na pele que cisma em envelhecer. Mordidas naquele cheesecake perfeito. Cafungadas no melhor cheiro do mundo.
Desperdiçamos muitos pedacinhos de vida, todos os dias. Sem nem perceber.
Anja mostrou o que a solidão pode fazer com uma pessoa. Quer dizer, Marcela nos fez sentir essa solidão, lá no íntimo das nossas entranhas, onde o frio se aloja e só é despejado com a presença do amor.
Só que não teve amor para Anja. Não teve amor para minha tia.
A solidão do desperdício só bate quando reparamos existências tristes. Esse é o poder de um livro. Te revirar do avesso com seus próprios sentimentos, lembranças e associações. Te fazer sentir. Te dar vontade de não desperdiçar nada, nenhum pedacinho sequer da sua própria jornada.
Prazer em reconhecê-la Marcela.
Espero ver seu não-sorriso novamente.
Leituras favoritas da semana:
⏱️Não negocie seu tempo, por Cândida Schaedler:
🔮 Literatura como oráculo, por Ana Margonato:
e na mesma linha Fabiane Guimarães:
Que crônica bacana, adorei !!! Me deu vontade de ler o livro...
às vezes, fico em dúvida sobre o que seria uma vida desperdiçada, se a solidão foi uma escolha consciente para anja, por exemplo, se ela viveu a seu modo, de uma forma diferente do que a gente imagina que seja bom. fiquei curioso pela história do livro. vou procurar por ele.